sábado, 30 de outubro de 2010

Celso Só Queria Uma Barriga Seis Estrelas


 
        Não é de hoje que eu espero por minha barriga de tanquinho. Num mundo onde a gordura tem cada vez menos espaço, exibir os (para mim, quase impossíveis) seis gominhos parece ter virado questão de sobrevivência. Sendo um pouco ainda mais crítico, porém realista, acredito que as pessoas hoje nos separam por categorias, do mesmo modo como são classificados os hotéis. Quer entender melhor? Transfome os gomos em estrelas. Quando se pensam em duas, alguns já se contentam. Dá para passar a noite. Quatro? Todos se acomodam felizes. Já repousar num seis estrelas é para poucos, muito poucos. É algo raro, precioso, quase único. Talvez seja por isso que só exista um hotel nessa categoria em todo o mundo (e ele se encontra na África). Bem, mas vamos voltar a falar sobre a minha barriga. Nos parágrafos seguintes, explicarei porque a gula é o meu maior pecado capital. Quanto aos outros seis, possuo apenas um pouco de vaidade (por querer minha barriga de tanquinho), de inveja (de quem a tem) e de preguiça (por não me esforçar o suficiente para conseguir uma igual). Meu sonho, como o homem, acaba morrendo pela boca.


         Nasci um tanto quanto frágil, tive que tomar banho de luz e o meu sangue era incompatível com o da minha mãe. Por alguma razão desconhecida, nem o leite materno eu aceitava. Achavam que eu iria morrer de desnutrição. Quando garoto, era bem magrinho e não ligava muito para comida. Até me recordo do cheiro de pão caseiro feito pela minha avó materna num grande forno à lenha, mas eu me satisfazia com um ou dois pedaços e voltava a brincar. Ao completar dez anos, algo estranho aconteceu. Enquanto algumas crianças se tornavam rebeldes ou mal educadas, eu me transformei num glutão. Na época, não se tinha muita consciência de valores nutricionais, tampouco se falava nisso. Uma coxinha era apenas uma coxinha, não uma vilã demoníaca que possuia um poder maquiavélico de estragar silhuetas. Como no meu colégio haviam dois intervalos diários, cada um deles me levava a um destino diferente: no primeiro, eu partia para a cantina. Matava dois salgados e um refrigerante. Quando a quantidade de braços que disputavam a atenção dos atendentes não era alarmante, eu voltava para mais um enrolado. Hum, aqueles enrolados… E eu nem me preocupava com a fila das fichas de papel, pois comprava logo talões inteiros. Já no segundo intervalo, era a vez do pipoqueiro. Além da pipoca tamanho gigante com molho de vinagre, eu pedia sempre um saco lotado de balas. Não contente, voltava para casa me deliciando com os piruás que não haviam estourado e que o Tio Zé guardava para mim com tanto carinho. Nada como ser um cliente cativo.


         Ao chegar à adolescência, fase da vida onde muitos encontram o desejo sexual, dei de cara com a gordura. Comecei a comer compulsivamente (sei que um psicólogo encontraria uma razão para tanto, mas a minha parecia mesmo ser fome). Eu, que havia sido uma criança magra e retraída, me tornara o gordo engraçado da escola. Outra questão de sobrevivência. Todo mundo me queria por perto, mas na hora das brincadeiras dançantes, quando tocava “Forever Young” ou “One More Night” e os casais dançavam colados, eu geralmente segurava uma vassoura. Caso você não conheça a dança da vassoura, pergunte para um amigo com mais de trinta ou dê um Google. Como nasci e cresci no interior e a minha cidade costuma ser bem quente, eu andava pouco a pé. Comecei a dirigir desde cedo e era totalmente sedentário, do tipo que adora um atestado médico para cabular as aulas de educação física. E quem é interiorano sabe: lá, se come pra caramba. Encher o bucho é a principal distração. Ir ao Mc Donald’s então é programa de sábado à noite. As pessoas se vestem bem, passam gel nos cabelos e tomam banho de perfume. Eu, já meio bagaceiro, preferia os botequinhos, onde me esbaldava em porções de cupim casqueirado com mandioca cozida, pão francês, farofa e molho vinagrete. A Coca-Cola era light por desencargo de consciência.


         Mesmo aos quinze anos, continuei crianção, vindo só a perder minha virgindade um pouco antes de completar dezesseis (e com uma mulher dez anos mais velha). Talvez pelo despertar da sexualidade, bateu a preocupação: “Cacete, eu sou uma rolha!” Já a par do meu drama, comprei um remédio homeopático que estava na moda e que deixava as pessoas com nojo de comida (anos depois, descobri que de homeopática aquela fórmula não tinha nada). Perdi vinte quilos e ganhei quinze centímetros de altura. Virei um daqueles magros barrigudinhos, mas nada que uma lipoaspiração aos dezoito anos não resolvesse. Quando meu corpo já dava sinais de embagulhamento novamente (é muito difícil morar na casa dos pais e fazer regime), fui estudar no exterior. No primeiro ano, morei numa casa de família num bairro negro da Filadélfia. Uma de minhas “irmãs”, daquelas que parecem ter sido tiradas de algum sit-com, adorava me encher de tranqueiras: Dukin’ Donuts (o Boston Kreme, aquele recheadão), Kentucky Fried Chicken (o copão tamanho família), Domino’s Pizza (as com queijo duplo). Claro que nunca recusei as ofertas dela e confesso ter adorado aquela fase. Graças ao bom Deus e ao meu TOEFL alto, entrei para a universidade e me mudei para São Francisco. Apesar do meu prédio ficar na frente de uma estação de metrô, eu fazia tudo a pé. Peguei gosto por longas caminhadas, mesmo naquela cidade que parecia um conjunto de tobogãs. Talvez por andar tanto, talvez por ter apenas vinte anos, eu comia de tudo e ainda emagrecia. Era comida pronta de supermercado, baldes de sorvete com calda, muffins, corn breads, bacon, ovos mexidos, toneladas de panquecas. Chocolate então, nem se fala. Acho que se fossem colocados enfileirados todos os M&M’s que já tracei, chegaria-se à lua. Talvez minha magreza pudesse ser explicada por dois fatores muito simples: primeiro, porque eu era muito baladeiro; segundo, porque a carga horária de uma universidade de artes nos Estados Unidos é muito pesada. Tinha gente que até chorava. Eu comia.

        
         Todos os anos, eu passava as férias de janeiro no Brasil, onde me esbaldava na comilança. Alguém aí já encontrou comida melhor do que a nossa em algum lugar do mundo? Eu ainda não. Arroz com feijão, bife acebolado, milho refogado, churrasco, pizza com sabor de pizza, caixas e caixas de Bis. Até doce de abóbora caseiro me levava às alturas. Eu retornava aos EUA meio porpeta, mas logo estava magrelo novamente. Quando me formei e voltei de vez para cá, passei um ano trabalhando em Porto Alegre. Sentia muita falta da Califórnia e acabei ficando meio deprimido. Você chora quando está deprimido? Eu como. Descobri o sagu com vinho e creme, as cucas de goiaba, os churrascos ainda mais saborosos. Ir para Gramado e voltar com o beiço cheio de gordura havia se tornado uma tradição. Ao final do ano, vim morar em São Paulo. Por exigências das circunstâncias (idade, vida noturna, paqueras), comecei a malhar feito um camelo. Cortei frituras, bebidas alcoolicas, doces. Vez ou outra, assobiava, olhava pra cima e entrava na Amor Aos Pedaços. Usando vários recursos, alguns naturais, outros nem tanto, acabei virando um gigante. Tudo parecia estar em seu devido lugar: triceps saltando, trapézio gritando, peitoral explodindo. Já o abdômen… quatro estrelas. Foi o máximo que consegui. Apesar de caminhar feito um cabrito, sempre me recusei a usar esteiras, pois me sinto patético correndo no mesmo lugar. Os dois gominhos inferiores, aquele par de filhos da puta, se recusavam a dar as caras. Apliquei injeções pra dissolver gordura, fiz massagens, me joguei no frango grelhado e passei a frequentar a academia seis vezes por semana. Nada. Do umbigo pra cima, tudo sequinho. Do umbigo pra baixo, uma leve barriga d’água. Hoje, quando penso naquela época, sinto que tive uma parcela de culpa. Eu era tarado por açaí, devorava pelo menos um pote grande por dia. É ou não é abençoada a ingenuidade dos vinte e poucos anos?


         Meu trabalho sempre foi o de escrever. Passo quase o dia todo sentado. Morro de inveja (olha o pecado capital aí de novo) daqueles que vivem pra lá e pra cá. Quando escrevo, seja numa agência, seja em casa, seja no Starbucks (meu local favorito para ter ideias), sempre deixo a mesa cheia de guloseimas. Se estou bonzinho, me contento com shakes de proteína, palitinhos com fibras e um café grande. No restante dos dias, rola Paçoquita, pães de queijo (sempre no plural), biscoitos recheados e o maldito chocolate. Às vezes, eu gostaria de ser francês só para me contentar com pequenas porções, mas até nisso dei azar: já viu descendente de italianos comer pouco? Acho que só mantenho o peso porque a família da minha mãe tem mal funcionamento de vesícula e eu herdei esse defeitinho de fábrica. Quando exagero na comida, lá vem a enxaqueca. Talvez há mesmo males que venham para o bem. O meu personal trainer vive me enchendo o saco, pois ele também é nutricionista. “Celso, você tá seguindo a dieta que te passei?” “Claro, Marcos, queijo cottage temperado com sal e azeite é uma delícia!” Nos primeiros meses, ele acreditou. Como malhamos juntos há mais de dois anos, já não acredita mais.

        
         E assim termino este desabafo. Espero que você tenha conseguido mensurar o tamanho da minha gula. Quando citei a história do hotel seis estrelas, garanto que muitos leitores ficaram pensando sobre o luxo e a ostentação do lugar. O que a minha cabeça de gordo imaginou, acredite ou não, foi o tamanho da mesa do café da manhã.